Neofascismo é disruptivo e o fechamento do regime, processo em andamento; jamais se deve subestimar a extrema direita
Por Julian Rodrigues, em A Terra é Redonda
“Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, foi sempre assim que o mundo mudou” (Margaret Mead).
O fracasso do “putsch da cervejaria”, seguido pela prisão de seu excêntrico líder (um certo Adolf) foram sinais tranquilizadores – pareciam as coisas andar em seus conformes, naqueles anos 1920 na Alemanha – apesar dos efeitos pesados daqueles sacrifícios impostos ao país no contexto da reparação devida depois da Primeira Guerra Grande.
Benito Mussolini tornou-se chefe de governo na Itália após o sucesso da grande “Marcha sobre Roma”, em 1922. Não foi necessário um golpe “clássico” nem na Alemanha, nem na Itália, para que Hitler e Mussolini tomassem o poder. O resto da história a gente conhece bem.
O Brasil de 2022 não é a Europa de 100 anos passados. O mundo hegemonizado pelos EUA, o capitalismo neoliberal pós-crise de 2008 desenham um mundo muito diferente. A China está aí para não nos deixar enganar. Novas formas de conservar a hegemonia estadunidense mundo afora apareceram. Governos autoritários e neoliberais parecem ser o novo paradigma.
Entretanto, a extrema direita europeia, por exemplo, não tem forças para chutar a mesa, assumir governos e solapar o consenso democrático-liberal. O trumpismo em si perdeu as eleições. Na França, Marine Le Pen assustou, mas não levou.
Tal onda ultradireitista, embora pareça vir se arrefecendo, está longe de ter sido derrotada. Os estadunidenses que o digam – pois além de ter de conviver com o ex-presidente Donald Trump palpitando sobre tudo o tempo todo, preparando-se para voltar à presidência, vem testemunhando avanços concretos do reacionarismo. A turba fascistoide nos EUA, conseguiu, por exemplo, revogar o direito das mulheres ao aborto legal e seguro (uma conquista dos anos 1970!).
O neofascismo de Bolsonaro segue conectado com as direitas e seus movimentos em todo o mundo – sobretudo porque é capaz de expressar/executar certo ultra-super-neoliberalismo radical que é música aos ouvidos dos hiper-ricos. Ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes é símbolo e síntese, um verdadeiro ícone da aliança tenebrosa entre a Faria Lima e a caserna.
O golpe de 2016 não foi arquitetado pensando que no final do processo Jair Bolsonaro iria se eleger. A ideia dos burgueses banqueiros paulistas/globalizados era tirar o PT e colocar o PSDB de volta – o candidato perfeito deles era o governador tucano de São Paulo Geraldo Alckmin.
Mas, business is business, as usual. Bolsonaro se viabilizou encantando os ressentidos e reacionários de todos os tipos, além de mobilizar o voto religioso popular neopentecostal. O ex-capitão abriu a caixa de Pandora. Despertou em milhões de pessoas (especialmente homens brancos do centro-oeste, sudeste e sul), seus “instintos mais primitivos” – como diria Roberto Jefferson.
Em 2022, o bolsonarismo não tem a menor condição de alcançar maioria eleitoral. A destruição das políticas públicas, o agravamento da crise social, o autoritarismo, as ameaças às liberdades democráticas tornaram Bolsonaro não só minoritário, mas rejeitado por quase 70% do povo. Parte significativa das elites capitalistas, inclusive e principalmente, a grande mídia monopolista rejeita e até faz oposição, ao seu modo, à continuidade do governo do pai de Carluxo.
Por outro lado, o mainstream burguês propaga a tal teoria dos dois demônios. Ou seja: equivalem Lula à Bolsonaro, emulando e delirando com uma candidatura da tal terceira via. Liberal, limpinha, urbana, simpática. Mas, não rolou, nem vai rolar e a tigrada sabe disso (tentaram Luciano Huck, Sérgio Moro, flertaram com Ciro Gomes, agora fingem carregar o caixão da tal Simone Tebet).
Mas, a vida é real e de viés. Outro dia mesmo, em 29 de junho, Bolsonaro falou para cerca de mil e quinhentos empresários em evento da CNI (Confederação Nacional das Indústrias). Não foi o primeiro nem único (e tudo indica que não será o último) convescote do gênero. Papo reto: o grosso do andar de cima vai apoiar de novo Bolsonaro – com ou sem – verdadeiros ou fingidos – constrangimentos.
O golpe não é só retórica maluca. O ex-capitão joga pesado. É por isso que manipula o quanto pode o “medo de Lula” cultivado por nossas elites golpistas. Um bando de gente milionária que apesar de continuar ganhando muito dinheiro nos governos do PT, trabalhou com afinco para derrubar Dilma Rousseff e encarcerar o ex-presidente.
Então, quando Jair Bolsonaro fala que vai dar um golpe ele não está blefando. Bolsonaro é ousado. É vanguardista. Não tem nada de incapaz ou idiota como há entre nós até hoje alguns que assim o classificam. Mais preocupante que as ameaças de Bolsonaro é a tímida reação da esquerda, dos progressistas e dos “liberais”, da grande mídia. O sujeito tem milhões de seguidores. Representa uma corrente de massas. As Forças Armadas estão no governo e pretendem continuar.
Toda vez que ouço algo do tipo: “as FFAA não apoiariam um golpe contra o resultado das eleições”, quedo-me entre perplexo e colérico. Como assim? Os milicos já estão sustentando o golpe desde antes, desde sempre. Está no DNA deles. As FFAA são coluna vertebral do governo Bolsonaro. Estão empoderadas como nunca desde a queda da ditadura, e ao mesmo tempo desfrutam de muitas benesses salariais. Por que haveria a milicada de ficar quietinha, conformada, fazer-se de legalista ante a eleição de Lula?
Para não dizer que nada aconteceu de positivo nos últimos anos: o país viu de perto o lixo que são as tais Forças Armadas. Uma turba de incompetentes, comandados por fardados velhotes, intelectualmente limitados, com baixo capital cultural. Senhores fascistoides, com a cabeça nos anos 1960, saudosos da ditadura militar.
Nada mais icônico e representativo do que é o Exército do que aquele ex-ministro da Saúde, verdadeiro neandertal – o general de divisão Eduardo Pazuello. Esse sujeito ainda será responsabilizado penalmente pela morte de milhares de pessoas durante a pandemia do Covid-19.
Ah, mas Joe Biden não quer golpe no Brasil, não haveria apoio internacional para arroubos autoritários! Ah, as Forças Armadas não iriam embarcar numa aventura. A burguesia financista não gosta mais do Bozo, não sustentariam uma quartelada. Será mesmo?
Há muitos cenários possíveis. As forças progressistas não têm o direito, depois de tudo que aconteceu desde 2016, de ser ingênuas. O neofascismo não vai entregar o governo “na boa”. Aliás, o próprio Bolsonaro já avisou para não contarmos com ele na cerimônia de transmissão da faixa presidencial ao novo ocupante do Palácio do Planalto no dia primeiro de janeiro de vinte-vinte-e-dois.
Reparem. Dificilmente Lula vencerá no dia 2 de outubro. Preparemo-nos para um mês inteiro de batalha nas ruas e redes. Ganhando nas urnas em 30 de outubro, tudo indica que teremos ainda mais e mais enfrentamentos pela frente. É bom não confiar somente nas “instituições” (elas foram cúmplices da derrubada de Dilma, prisão de Lula e vitória do Bolsonaro).
Quer dizer então que Bozo tem força e conta com as condições para fechar o regime e golpear a democracia? Não. Hoje não. Todavia, contudo, porém, entretanto, Bolsonaro não é “cachorro morto”. Nem está só blefando. Se decidir colocar em marcha toda sua base neofascista e seus apoios no aparato do Estado abrirá uma guerra, talvez literalmente, no país.
Não vamos tratar fascista como doido. Não são. Eles têm ideologia, programa, método, tática e política. Já sabemos disso. 2022 não é apenas sobre eleger Lula e fugir do pesadelo. A coisa é muito mais complicada. O buraco é muito mais fundo do que parece. Devemos nos preparar para garantir – colocando milhões de pessoas em movimento, não apenas a vitória e a posse de Lula, mas a derrota acachapante do neofascismo.
*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é ativista de Direitos Humanos e LGBTI.
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Imagem: Evaristo Sá / AFP
Realmente essa é a dura e cruel realidade….